sábado, 26 de julho de 2014

O PARÁGRAFO DA “GAVETA” NA EMENDA À CONSTITUIÇÃO ESTADUAL




Por Henrique Batista

Após quase 25 anos de sua promulgação, a Constituição do nosso estado passou por recente e profunda emenda sob o pretexto de atualização e compatibilidade com a Constituição Federal, o Texto Maior.
Dentro das inovações perpetradas pela Assembleia Legislativa, um parágrafo do seu texto, prima facie, me casou estranheza. Isso porque, além do aparente desrespeito as técnicas de boa redação previstas no artigo 11 da Lei Complementar Federal n. 95/98, os conceitos indeterminados e imprecisos utilizados proporcionam amplitude interpretativa que pode conduzir a desfecho perigoso, aonde, me parece, quis o legislador reformador chegar.
Estou falando do parágrafo terceiro do artigo 53, da Constituição Estadual, alterado pela Emenda Constitucional n. 13, de 15 de julho de 2014, publicada no DOE 16.07.2014. Eis a sua integral redação: “§3º. As decisões do Tribunal de Contas, de que resulte imputação de débito ou multa, têm eficácia de título executivo, devendo a Fazenda Pública Estadual ou Municipal, no âmbito de suas competências, encaminhá-las para execução, e com o reconhecimento da boa-fé, a liquidação tempestiva do débito ou multa atualizado monetariamente sanará o processo, se não houver sido observada outra irregularidade na apreciação das contas”.
Metade do texto referido, em especial, até a palavra “execução”, preceitua o lógico ao nosso sistema, inclusive já presente no texto originário, ou seja, que as decisões do Tribunal de Contas transitadas em julgado – não mais admitem recurso no âmbito administrativo –, que obriguem gestores responsáveis por danos ao erário a ressarcir o débito respectivo, assim como a pagar multas em virtude da prática de irregularidades formais, formam títulos executivos. Por consectário, as obrigações constituídas terão o seu cumprimento exigido no Judiciário pela Procuradoria da Fazenda Pública credora, acaso não haja o cumprimento voluntário pelo responsável.
O trecho final do parágrafo, por sua vez, ao que me parece, possibilita a tomada de uma solução esdrúxula que põe em risco o trabalho e a eficácia das decisões do Tribunal de Contas. É que, encaminhada a decisão do Tribunal de Contas para execução, caso o responsável efetue o pagamento voluntário (“com o reconhecimento da boa-fé”) do débito atualizado relativo ao dano ao erário cometido e/ou da multa, o processo, seja ainda no âmbito administrativo da Procuradoria representativa da Fazenda Pública Estadual ou Municipal, ou até mesmo judicial, se “sanará”.
Neste prisma, é imperioso registrar que o cumprimento voluntário ou não das obrigações enseja apenas a extinção do processo executivo, seja na esfera administrativa ou judicial. Assim, juridicamente, não há de se falar em extinção da irregularidade. Com isso, à luz da independência entre as instâncias, nada impede a apuração da conduta do gestor no âmbito criminal e cível, neste último no tocante à improbidade administrativa. Além disso, não há óbice em considerar a irregularidade para fins de restrição eleitoral, haja vista a possível configuração de inelegibilidade, cuja competência declaratória é da Justiça Eleitoral, e não do Tribunal de Contas, como consignado no parágrafo sétimo do artigo 53, da Constituição Estadual, também inserido pela emenda em questão.
Ocorre que a expressão “sanará o processo” remete a ideia de cura. Logo, teremos a superação da irregularidade que ensejou o débito, caso adimplido. Sendo assim, ao menos em tese, será possível esvaziar o trabalho do controle externo exercido pelo Tribunal de Contas, no combate aos maus gestores. Isso porque, bastará o pagamento para que irregularidade já considerada “insanável” torne-se sanada. Desta feita, evita-se que o nome do gestor seja inserido, por exemplo, na lista de gestores com contas rejeitadas por irregularidade insanável – comumente e erroneamente denominada de “lista de inelegibilidade” –, o que facilitará o registro de candidaturas de quem não pode ser votado.
Diante disso, não obstante a provável inconstitucionalidade, acredito ser necessário rever tal disposição, pois, do contrário, abrir-se-á espaço no sistema que pode acomodar uma “gaveta” prejudicial à democracia e aos valores republicanos.
Natal, 23 de julho de 2014.

Henrique Batista é Mestre em Direito pela UFRN, Professor de Direito do UNI-RN e do IAP Cursos, Assessor de Gabinete no TCE/RN, e Advogado.